São coisas de mais, para mim, que tenho coisas de menos. São 40 anos que, não sendo de mais, são, ainda, de menos. De um harpejo rápido e estonteante soam-me as notas, nítidas, que cantam o fim da guerra, o fim da censura, a Liberdade, eleições, a Constituição, legalização de partidos, Poder Local Democrático. A música é barroca, um vira, uma valsa a mil tempos, um som de banjo petessegeriano a perguntar por flores com uma resposta de cravos, um povo nas ruas a dizer que é ele quem mais ordena, um Maio primeiro e fraterno prenhe de trabalhadores diversos a dizer se isto não é o povo onde é que está o povo, olha o Saramago, o Urbano, o Manuel da Fonseca, o Carlos taxista, a Necas estudante, o vizinho do lado, a florista do Rossio, o amigo da Lisnave, a malta do Canto Livre, o Álvaro, o Soares, o Morais e Castro, a dona da capelista, o mecânico de automóveis lá da rua, todos, lado a lado, o povo.
Depois a azáfama de dar largas ao grito, de dar voz ao futuro, de fazer coisas como limpar monumentos num domingo prescindindo do lazer e dando graças à liberdade de poder escolher serviço público, os soldados na alfabetização, a terra a quem a trabalha, os olhos de Jorge de Sena a verem a liberdade a passar por aqui, o Zeca, o Paredes, o Adriano, nós todos a darmos as boas vindas ao Zé Mário, ao Luís Cília, ao Sérgio, ora vivam!, vamos cantar juntos acusando quem nos torturou, clamando o merecimento dos prémios de produção em Loures, exaltando esta ou aqueloutra comissão de trabalhadores ou de moradores, viva o MFA, a aliança Povo-MFA, vivam os trabalhadores, viva (agora sim) Portugal.
Milhares de portugueses foram, como a toupeira da cantiga do Zeca, os construtores subterrâneos dos caboucos da data em que a Liberdade emergiu. Sofreram, lutaram, muitos morreram. Em Almada um Monumento aos Perseguidos evoca-os. Na memória de muitos a sua lembrança não mais se apagará. Foi uma luta de anos e anos de clandestinidade e de sofrimento.
Agora, volvidos 40 anos sobre a Revolução dos Cravos, olhando para as traições, os desenganos, as falsas promessas, o roubo de salários e pensões, o ataque feroz à classe média, os disparos de napalm ao Serviço Nacional de Saúde, o convite à emigração de jovens, professores e operários qualificados, perpretados pelos partidos do chamado «arco da governação» (como se houvesse um decreto, um artigo constitucional, que decretassem que só esses podem governar...), olho à minha volta e vejo amargura. Mas vejo – e é com um sorriso nos olhos que vejo – o povo nas ruas, no 25 de Abril de 2014, ainda e sempre a clamar que «somos muitos, muitos mil para continuar Abril».
Escrevi uma cantiga, recentemente, que termina assim: «só o dia da mudança é que ainda não sei». Exactamente porque sei da mudança que, quer os vampiros de que fala o Zeca queiram ou não, virá. Como disse Saramago uma vez, e hoje, decerto, diria de novo: «chegará (outra vez) o dia das supresas».
Há-de ser, como escreveu Sophia de Mello Breyner, num outro dia que será, de novo, «inicial inteiro e limpo». Quando? «Ainda não sei».